BRINCAR, JOGAR, TOCAR E ATUAR: CONEXÕES ESTÉTICAS
Prof. Dr. João-Francisco Duarte Júnior1
(Palestra proferida em 23/09/2011)
(ADVERTÊNCIA DO PALESTRANTE:
O texto que se segue foi produzido a partir da transcrição ipsis literis de minha fala, a qual foi devidamente trabalhada e reescrita por mim de modo a não apenas eliminar os erros, repetições e vícios de linguagem que se comete oralmente como também acrescentar uma ou outra explicação e tornar mais fácil e escorreita a sua leitura. O que se tem, então, parece ser um híbrido de palestra e artigo, no qual a fluidez e o equilíbrio entre a argumentação teórica e a informalidade foram os parâmetros norteadores de sua produção. Penso que assim a leitura destas páginas possa se fazer mais prazerosa, ainda que cause arrepios nos avaliadores da produção acadêmica, os quais, em seu afã de quadricular o mundo, não saberão direito em que escaninho classificá-las.)
Bom dia!
É um prazer estar aqui atendendo ao convite da Sumaya e de seu grupo de pesquisa para bater um papo com vocês. Nada muito professoral, mas um bate-papo mais descontraído e muito pouco formal, no qual procurarei apresentar algumas idéias para posterior discussão.
Sem mais delongas, devo dizer que freqüentemente sou convidado para ministrar aulas inaugurais de alguns cursos, Brasil afora. Tais aulas em geral acontecem no começo do ano e recebem o pomposo nome de Aula Magna. Nessas ocasiões eu digo sempre que esse título dado à minha fala precisa ter uma consoante alterada, de Aula Magna para Aula Magda – o que permite ao público dizer, caso eu não esteja agradando, “cala a boca, Magda”, como se fazia com aquela personagem da TV. Porque “magno”, segundo os dicionários, significa superior, excelso. Desta forma, o único magno que há na universidade é o reitor, por isso ele recebe o tratamento de magnífico. Como não sou reitor
Professor Livre-Docente do Instituto de Artes da Unicamp.
nem ocupo cargo algum, jamais poderia dar uma aula magna, motivo pelo qual ministro uma aula Magda mesmo.
Assim, talvez aqui esta minha fala seja, em boa medida, uma Aula Magda. E já que se trata de uma aula Magda, em vez de eu começar fazendo uma palestra sobre o título Brincar, jogar, tocar e atuar: conexões estéticas, será melhor a gente começar de outro jeito, comigo contando uma piada para vocês. E sendo este um encontro acerca de artes, convém que a anedota trate de arte e manifestações estéticas.
A história, então, é a seguinte. Havia uma menina do interior do estado, de uma vilazinha lá no oeste, quase Mato Grosso, que veio para São Paulo trabalhar como doméstica na casa de uma família muito rica. Chegou aqui e durante um ano trabalhou na mansão de seus patrões. Transcorrido esse tempo, qual não foi sua surpresa descobrir que poderia ter um mês de férias remuneradas. Como jamais imaginara uma coisa dessas, recebeu toda contente o seu dinheiro e voltou lá pra cidadezinha dela, no sertão, para rever os pais e as amigas. Estas, logo a rodearam querendo saber “como é que é Sum Paulu”. Como era São Paulo e a casa da família em que ela morava e trabalhava. Como “é essa gente rica de Sum Paulu”. Ao que ela respondeu: “olha, pra mim foi uma decepção, porque lá é tudo farso, tudo de mentira. Porque cês veja: a casa dos meu patrão num é deles, é de um tar de Niemeyer. Memo o jardim da casa que eles mora também num é deles, é de um tar de Burle Marx. As roupa que meu patrão e minha patroa usa não são deles, são tudo emprestada. Quem empresta pra minha patroa é uma tar de Dona Karan, e pro meu patrão um tar de Armani. E a mentira maior de todas é que o meu patrão vive dizeno que tem um Picasso. Mas é tudo mentira, que eu já vi: é deste tamanhinho.”
Bom, esta piada vale então como uma epígrafe da palestra. E quem diria: vocês esperando uma palestra séria e o que estão tendo é piada, é humor. Mas humor é muito bom. É um paradoxo que a gente não tenha mais humor nas escolas. Porque o Brasil é um país em que se faz piada com tudo, até com as situações mais trágicas. A pessoa morre hoje e amanhã já tem piada a seu respeito, ela chegando ao céu, chegando ao inferno. Isto com qualquer um, podendo ser até a pessoa mais querida, mais famosa. Depois do enterro do Airton Sena, que mobilizou todo mundo, no dia seguinte já se tinha piadas sobre ele chegando ao céu. Então, a gente é um país que ri de si próprio, e isso é maravilhoso. Quem já morou na Europa sabe como é difícil eles rirem de si próprios. Precisamos entender que o humor é uma forma de conhecimento, sendo até um paradoxo a gente não usar mais o humor nas escolas, justamente como forma de conhecimento. O humor nos faz ver o avesso das coisas, nos dá outra visão de mundo. Revela outro aspecto da realidade, fornece outro ângulo de percepção das coisas.
Os romanos já diziam – e agora vou ficar chique e fazer uma citação em latim –: ridendo castigat mores, quer dizer, rindo se castigam, se punem, os costumes. O que é uma profunda verdade. Vejam: o humor é tão importante, tão impactante, que nesses acontecimentos atuais na Síria, os quais vocês devem estar acompanhando, o cartunista Ali Ferzat acabou de ser preso, torturado, e teve as mãos quebradas devido a alguns cartuns que publicou, rindo do regime, que resiste e não cai. Há algum tempo atrás houve o fato de um cartunista dinamarquês ser condenado à morte por grupos fundamentalistas islâmicos por haver feito cartuns com o profeta Maomé.
E eu me lembro agora de uma história ocorrida logo antes do golpe de 64. O país todo conturbado, boatos, passeatas, movimentações, e muita gente comentando que o Brasil iria se tornar comunista, o famoso perigo vermelho. Nesse estado de coisas um político se sentou para engraxar os sapatos – aqui na Praça da República, me parece -- e numa dada altura disse ao engraxate: “anda se falando por aí que o Brasil vai virar comunista; o comunismo parece que vem chegando; você não está preocupado?” Imediatamente responde o engraxate: “tou não doutor, deixa vir esse tal comunismo que a gente logo avacalha com ele..." Portanto, é esse espírito brasileiro, é esse humor, que nós usamos muito pouco nas situações de ensino e aprendizagem. Porque nós as consideramos coisa séria.
Deste modo, vamos ver o que pensa a respeito o Roberto Gomes, romancista e filósofo de Curitiba, com vários livros publicados e alguns premiados. É dele uma obra, a meu ver, fundamental para se compreender melhor o intelectual brasileiro, Crítica da razão tupiniquim, na qual ele comenta:
É... urgente que assumamos a capacidade a sério do humor como forma de conhecimento. Só no momento em que, abandonada a tirania do sério, percebermos que nossa atitude mais profunda encontra-se em ver o avesso das coisas é que poderemos retirar de nossas costas o peso de séculos de academismo.
Percebam, pois, que ele fala em levar a sério o humor, o que pode soar uma contradição. Como é que se leva a sério o humor? Isto, contudo, não se trata de uma contradição. O humorista tem de levar profundamente a sério o seu trabalho, senão não produz humor. E nesse texto o Roberto Gomes estabelece ainda uma diferença fundamental para se entender a questão. Trata-se da distinção entre a locução adverbial a sério e o adjetivo sério. Este, o adjetivo sério, empresta uma qualidade e acaba por cristalizar, de certa forma, o substantivo. O professor sério consiste quase num script, num figurino que eu tenho que vestir para ser considerado sério, em geral, terno e gravata nas solenidades, óculos, falar usando palavras eruditas, fazer citações em latim (vocês viram que há pouco eu tentei ser sério). Isto é o professor definido como sério. Consiste num estereotipo que se tenta assumir – no caso, aqui, estamos falando do professor. Ao passo que se levar algo a sério tem a ver com um comprometimento vital com aquilo, um compromisso intelectual, sensível, humano, inteiro. Levar algo a sério supõe que eu me entregue a essa coisa. Deste modo, posso levar a sério a minha capacidade de fazer piadas com tudo. E eu, particularmente, levo muito a sério isto. Aquele dito “perco o amigo, mas não perco a piada”, certamente tem o meu aval.
E é o Roberto Gomes quem pontua novamente:
Se levo a sério, isto é algo que sai de mim em direção ao objeto da seriedade. Se sou sério, me coisifico como objeto de seriedade. Ai está a diferença entre o que é dinâmico – eternamente em questão – encontrado no a sério, e o caráter de coisa acabada e estéril da seriedade do sujeito objetificado. A sério revigoro o mundo com uma quantidade imensa de significações. Sério, reduzo-me a objeto morto, caricato, de existir centrado no externo. Ao levar a sério, estou profundamente interessado em alguma coisa, a ponto de voltar todas as minhas energias no sentido de sua realização...
Essa distinção entre o sério e o a sério, então, vai servir para a gente falar um pouco sobre arte. Mas primeiro preciso dizer que eu gosto muito de dar aulas para o primeiro ano de graduação em arte, para aqueles jovens recém ingressados na universidade, cheio de sonhos e esperanças. Logo na primeira aula costumo lhes dizer: garanto que quando vocês disseram aos seus pais que iam estudar arte, prestar vestibular para arte, a maioria deles lhes respondeu “mas meu filho, minha filha, porque você não vai fazer algo sério? Por que você não entra num curso sério?” Ou então: “tudo bem, faça arte, mas faça outro curso paralelamente, que lhe dê dinheiro, que lhe dê seriedade”.
Porém, é justamente esse caráter não sério da arte, naquele sentido paralisante do sério que comentamos antes, que precisamos louvar, pois a arte não consiste em algo sério, mesmo! Temos, contudo, que levá-la profundamente a sério, o que é um pouco diferente. E esses pais entram em desespero quando às vezes me ouvem falar numa dessas aulas inaugurais que, além de a arte não ser séria, ela também é inútil. Completamente inútil, de uma inutilidade a toda prova. Não serve para nada prático, a arte. Nada! A arte é algo perfeitamente inútil, como, aliás, já afirmou o escritor Oscar Wilde. E neste sentido o poeta Paulo Leminski tem um ensaio maravilhoso chamado A arte e outros inutensílios, publicado originalmente na Folha de S. Paulo. A arte, diz ele, constitui um inutensílio. E é isso que faz dela uma coisa tão fantástica, tão preciosa. A arte não tem serventia prática, de coisa utilitária, não é esse o seu papel e a sua função no mundo.
As coisas práticas, as coisas úteis, são aquelas que pertencem ao que o Rubem Alves chama de caixa de ferramentas. Já a arte, faz parte da caixa de brinquedos. Nós nascemos com essas duas caixas, a caixa de ferramentas e a caixa de brinquedos. Porém, a escola se preocupa apenas em abrir a caixa de ferramentas dos alunos e os obriga a fechar sua caixa de brinquedos. Porque esta, obviamente, não é uma coisa séria. Mas é justamente a conexão entre essas duas coisas o mais importante a se conseguir. A arte pertence à caixa de brinquedos, e, portanto, não é séria nesse sentido de se poder fazer coisas práticas com ela. Contudo, ela desempenha um papel fundamental na vida humana. A arte não é um instrumento, uma ferramenta de uso prático. Eu até posso usar uma escultura do Degas, uma de suas pequenas bailarinas, paraescorar a porta de modo a não bater com o vento. No caso, estou fazendo um uso prático dela, só que ela poderia perfeitamente ser substituída por um tijolo, por um bloco de bronze, qualquer coisa pesada, que essa função prática continuaria a ser cumprida. Sua dimensão estética, no caso, não estaria em questão nem teria qualquer utilidade. Desta maneira, a dimensão estética da obra de arte é algo absolutamente inútil no mundo prático, no espaço de atuação da caixa de ferramentas.
Apesar disso, ao longo da história sempre se pretendeu usar a arte para alguma coisa prática e funcional. A igreja católica a utilizou para ensinar as suas doutrinas, do mesmo modo que a revolução francesa e a revolução russa, ou ainda os militares após 64 aqui no Brasil. E os políticos continuam, em época de eleições, encomendando jingles-exaltação para que sejam lembrados e votados. Só que todos esses usos da arte apontam para além dela, não têm nada a ver com a sua qualidade estética. Eu posso, por exemplo, me comover com a Pietá de Michelangelo mesmo sendo ateu. A sua qualidade estética independe do uso que dela se queira fazer. A inutilidade da arte, então, pode-se dizer seja-lhe inerente, e consiste precisamente naquilo que a torna arte.
No entanto, pela estreita valorização tão-só da dimensão prática da vida, começa-se a conectar arte com coisas sérias, de modo a se dar um peso para ela, tentando-se torná-la parte da caixa de ferramentas. A arte entra na escola – da educação infantil à superior – e imediatamente é conectada a disciplinas consideradas sérias, História da Arte, Filosofia da Arte, Antropologia da Arte, Sociologia da Arte. Acredita-se que assim a gente possa torná-la coisa importante, útil. Nós a tornamos um objeto, um objeto de estudo de outros saberes, e aí o importante não é a arte, mas a História, a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia. Na escola fundamental isso acontece com o nome “contextualização”. Faz-se uma “leitura” da obra e se ensina a sua inserção na história da arte. Tudo para se transformar a arte em conteúdo. Não vou entrar nessa discussão aqui, só estou tangenciando-a, apontando a sua existência e importância.
Como antes eu falava da caixa de ferramentas e da caixa de brinquedos, a gente precisa entender que, no fundo, o sentido da vida nos é dado pelas coisas inúteis. A vida é absolutamente inútil. Inútil! Pensemos, por exemplo, no que significa um dia útil. Dia útil é a coisa mais chata que se tem, já que em geral é preenchido por tarefas práticas, como ir ao banco, pagar as contas, freqüentar reuniões... Os dias inúteis é que são bons. Os feriados e fins de semana, quando se fica em casa, se vai ao cinema, se lê, se toma cerveja, se ama e se diverte. Os dias inúteis é que dão sentido à vida; nas coisas inúteis é que reside o sentido da vida. Na verdade, só fazemos as coisas úteis para poder ganhar dinheiro, o dinheiro que nos permite viver as inúteis. Vejam o que diz o Leminski:
A burguesia criou um universo onde todo gesto tem que ser útil. Tudo tem que ter um “pra quê”... O pragmatismo de empresários, vendedores e compradores, mete preço em cima de tudo. Porque tudo tem que dar lucro. Há trezentos anos, pelo menos, a ditadura da utilidade é unha e carne com o “lucrocentrismo” de toda essa civilização. E o princípio da utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro. Vida é o dom dos deuses, para ser saboreada intensamente até que a bomba de nêutrons ou vazamento da usina nuclear nos separe deste pedaço de carne pulsante, único bem de que temos certeza.
O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A possessão diabólica. A plenitude da carne. O orgasmo. Estas coisas não precisam de justificação nem de justificativas. Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida. As únicas coisas grandes e boas. Fazemos as coisas úteis para ter acesso a esses dons absolutos e finais. A luta do trabalhador por melhores condições de vida é a luta pelo acesso a esses bens, brilhando além dos horizontes estreitos do útil, do prático e do lucro. Coisas inúteis são a própria finalidade da vida.
Isto, portanto, é o que assusta a maioria das pessoas: dizer que a arte é inútil. O sentido da Arte está na própria arte. A gente não precisa cercá-la de justificativas teóricas. A arte, o sentido da arte, está nela mesma. São portas de significação que ela nos abre para vida, nós não precisamos explicar isso de modo técnico, teórico, sério, digamos assim.
E percebam o que ocorreu até aqui: a gente começou brincando, começou com humor, contando piada, falando das coisas úteis e as inúteis. O que viemos fazendo foram tão-só jogos de palavras. Viemos jogando com as palavras. Filosofia, no fundo, é isto: um grande jogo de palavras. Coisa que não sou eu quem diz, mas o filósofo Ludwig Wittgenstein, que escreveu apenas dois livros de filosofia, os quais, porém, são marcantes. Diz ele exatamente isto, filosofia nada mais é que um jogo de palavras. No fundo, toda a construção de significado e sentido da vida humana constitui um jogo de signos. Palavras são signos, como outros tipos de signos existentes, feito os signos matemáticos, os da química e os estéticos. Dar significados para as coisas é transformá-las em signos. Ou o mundo e a vida são significados por meio dos signos conceituais, lógicos, como as palavras e os números, ou por meio dos signos estéticos. E é assim que damos significado à vida, transformando-a em signos. Por eles e com eles podemos observar a vida e a nós mesmos de fora, digamos assim. Esse grande jogo de significar que a vida humana se revela ser, deste modo, nos remete ao título que eu dei para esta minha pequena fala aqui, esta conversa que estou tendo com vocês – “Brincar, Jogar, Tocar e Atuar: Conexões Estéticas”.
Vamos pensar um pouco em cada um dos termos que compõem este título. Primeiro, o brincar. Comecei a minha fala aqui brincando, contando uma piada, que nada mais é que um jogo de palavras. E seguimos com esse jogo, fazendo um pouco de filosofia – está aí o jogar, segundo termo do título. Vejamos o terceiro, o tocar, que no caso não tem a ver com o tato, mas quer significar o tocar um instrumento musical. Sendo o último, o atuar, aquela atividade do ator, no palco ou na tela. Percebam que todos esses quatro verbos, em português, são ditos em inglês com apenas um, que é to play. Em alemão, para essas quatro ações humanas também se tem um único verbo, spielen. O anglo-saxão percebe essas quatro atividades conceitualmente como uma só, em sua essência. Brincar, jogar, tocar e atuar: tudo isso é muito semelhante e faz parte, no fundo, de nossa caixa de brinquedos.
Mas para a gente dar aquele ar de seriedade à palestra é melhor citar alguém importante, Johan Huizinga, que foi um filósofo e historiador holandês. O Huizinga escreveu um livro fundamental chamado Homo ludens, significando o homem lúdico, o homem que joga. O lúdico, para ele, constitui a dimensão mais fundamental do ser humano. O ser humano é o ser que brinca, que joga. Nessa obra ele procura mostrar que todas as espécies superiores de animais, os mamíferos, brincam. Todos brincam! O cachorro brinca, o macaco brinca, todos brincam. E nós brincamos também, mas num nível mais maravilhoso ainda, que é o nível simbólico. Eu posso contar piadas, e aí estou brincando com as palavras, estou jogando com as palavras. Então o Huizinga procura refletir no sentido de que tudo na vida, no fundo, consiste num grande jogo, numa grande brincadeira. Um imenso e prazeroso jogo de montar significados. Há um romance do Herman Hesse chamado O jogo das contas de vidro, no qual ele também trabalha com essa idéia, da vida como um armar e desarmar de jogos significantes.
Voltando ao Huizinga, sua tese é que, se desde o começo lá nas cavernas nós, humanos, tivemos que usar a nossa caixa de ferramentas para sobreviver, desde então nós também nos valemos de nossa caixa de brinquedos. Houve que se criar flechas, lanças e potes para a sobrevivência, mas todas essas coisas estavam cheias de coisas inúteis em volta: tais artefatos eram enfeitados e decorados. Não se tratavam apenas de instrumentos úteis, mas também de coisas lúdicas, belas. Nunca se cria nada estritamente útil, sem uma dimensão estética. O mundo tem sempre que ser estético. O mundo da utilidade precisa se acompanhar de um joguinho. As coisas não são só úteis, elas carregam também uma dimensão de inutilidade estética. O estilo e o design consistem exatamente nisso, coisa que nos acompanha desde as cavernas. Deste modo, o que Huizinga quer nos fazer ver é que essa dimensão lúdica do jogo, da brincadeira, do construir, do montar, é algo inato à gente, faz parte do humano. Todos os animais ditos superiores, os mais altos na cadeia evolutiva, brincam, e nós humanos chegamos a um nível mais elevado de brincadeira, do jogo, que é o jogo simbólico, o jogo significante.
E ainda, de par com Wittgenstein, Huizinga também pontua que a linguagem, esse primordial instrumento de significação, de construção do mundo humano, ou seja, de uma realidade significante, constitui em si um grande jogo. Em suas palavras:
As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é um jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado da natureza.
Portanto, para esse filósofo, a dimensão lúdica, a dimensão do jogo, é constitutiva do humano. E é uma pena que, como já comentei lá no início, as escolas queiram a seriedade, naquele sentido do sério fossilizado, não da vida levada a sério. O jogo, a brincadeira e o humor não fazem parte desse sério que elas perseguem. Como diziam os nossos avós, primeiro o dever e depois a diversão, e é nisto que continua a acreditar o sistema educacional. Entretanto, a gente tem que viver o dever como diversão e fazer da diversão um dever, estas coisas não podem estar separadas. Ou seja: esse sério que se quer imprimir à ação educacional, à escola fundamental e mesmo à academia, contradiz fundamentalmente a idéia do Huiziga e de outros pensadores de seu quilate.
O humor é para ser levado a sério e em si ele também é um dos jogos que jogamos. O humor é uma forma de se brincar. E a palavra agora volta novamente ao Huizinga:
Todas as idéias, aqui vagamente reunidas num mesmo grupo – jogo, riso,... piada, gracejo, cômico etc. – participou daquela mesma característica que nos vimos obrigados a atribuir ao jogo, isto é, a de resistir a qualquer tentativa de redução a outros termos. Sem dúvida, sua ratio e sua mútua dependência residem numa camada mundo profunda de nosso ser espiritual.
No que consiste, portanto, o jogo? De onde vem o prazer de se jogar? De pronto, note-se que o jogo, como a arte, também é algo absolutamente inútil, que não produz nada. Por que jogamos, por exemplo, baralho? (E não estou falando, obviamente, de se apostar, de se buscar um ganho com a vitória.) O prazer do jogo de baralho está no próprio jogar. Vejam o jogo de paciência, que é um jogo que jogamos com nós mesmos, sozinhos – antes se jogava com cartas reais, hoje ele acontece no computador. O prazer do jogo de paciência provém de as cartas todas se encaixarem numa seqüência, de a gente conseguir construir uma figura ordenada e tudo dar certinho, encaixando-se. O prazer é chegar nessa figura harmônica, organizada, perfeita, fechada. O que é muito parecido com a arte: o prazer da forma que a arte nos permite. A arte é também um grande jogo de construir, de montar uma figura harmônica. O jogo não produz nada concreto, produz só prazer da forma, que é também o prazer da arte. O prazer do jogo é jogar, é montar uma figura, fazer movimentos harmônicos.
O que estou querendo dizer é que, no fundo, a arte consiste num grande jogo, e a experiência estética provém de nos entregarmos a esse jogo. Alguns filósofos, inclusive, dizem que para se ter uma experiência estética é preciso que se suspenda a descrença, ou seja, esse lado sério, conceitual, lógico, pesado, grave. Para a gente alcançar uma experiência estética faz-se necessária a suspensão da descrença – é preciso aceitar o jogo, acreditar. Se eu não acreditar desde a primeira linha que Gregor Samsa acordou naquela manhã transformado num imenso inseto eu não jogo o jogo que o Kafka me propõe em seu romance A metamorfose. Se eu pensar, “ah, mas como o cara pode acordar transformado num inseto? Isso é bobagem”, pronto, eu não jogo o jogo que o Kafka me propõe. Tenho que suspender a descrença, acreditar que isto seja possível para entrar no jogo.
Muito similar ao que a criança faz quando pega um cabo de vassoura, sobe e brinca de cavalo. Ela sabe que aquilo não é um cavalo, mas é como se aquilo fosse um cavalo. A arte é isso, é um grande jogo de “como se”, e a gente tem que entrar nesse jogo para alcançar o prazer estético. Por isso me incomoda muito essa busca de se tornar a arte uma coisa séria. Ter que falar sobre arte, construir discursos teóricos, citar filósofos etc. – estou falando da arte-educação. O prazer do jogo é jogar. Nada mais assombroso para as crianças do que aporrinhá-las com história da arte, com teoria da arte. Isso é verdadeiramente chato para elas. Isso afasta a criança de qualquer arte. O primeiro aprendizado da arte é aprender o seu código, é conseguir ter uma experiência estética.
Imaginem que vamos fazer um curso de natação. Os professores chegam, nos dão apostilas sobre movimento muscular, teorias da natação, técnicas de respiração, reflexões sobre a água, os tipos de água, água suja, água limpa, de piscina, de mar... Então a gente estuda, estuda, estuda tudo aquilo e em seguida nos passam vídeos de nadadores, de olimpíadas, de palestras de nadadores, de treinadores etc. Por fim, depois de tanto estudo, nos submetem a uma prova – talvez de múltipla escolha – e, ao sermos aprovados, recebemos um diploma de nadador. Sem nunca termos caído na piscina, termos tido contato corporal com a água.
E não será isto o que se está fazendo com a arte, nas escolas? Ninguém ali é levado a ter uma experiência estética, a ter o prazer com a arte, porém se despeja sobre o aluno um bom tanto de teoria, história da arte, leitura da obra de arte, contextualização da arte e esse monte de coisas que verdadeiramente aborrece as crianças. Tal processo acaba é tornando a arte uma coisa muito chata para os estudantes. O prazer da arte, como o da natação, é cair na piscina! É mergulhar. Depois, sim, essas coisas ajudam. Num curso de natação, depois que eu senti meu corpo na água, aprendi os movimentos básicos, já estou conseguindo flutuar e me deslocar na piscina, aí sim toda aquela teoria, os relatos de nadadores, podem me ajudar. Ajudar a nadar melhor, a aprimorar o meu prazer de nadar. O fundamental na natação é cair na água. É sua condição sine qua non.
Da mesma forma, o primeiro aprendizado da arte é se aprender a ter a experiência estética, é aprender o código das obras. Toda arte é composta num código, e a gente aprende esse código vivenciando as obras. Assim como na natação é fundamental se vivenciar a água. Os códigos estéticos se aprendem ao se assistir ao teatro, ao cinema, ao se ler, se ouvir música... É assim que aprendemos os códigos estéticos, tendo-se experiências estéticas com as obras de arte, e não por meio de teorias prévias.
No começo do cinema, na época do cinema mudo, além do pianista, que tocava ao longo do filme, havia a figura do explicador. O explicador era alguém que ficava explicando certas cenas, que ainda não eram claras para os espectadores, recém apresentados ao código cinematográfico. Por exemplo: alguém na rua chega a uma porta e bate nela. Corta! Próxima cena, alguém de dentro de uma casa se dirige à porta da frente para abri-la. No começo do cinema as pessoas não entendiam a seqüência disto, pareciam duas coisas, duas cenas diferentes, desconectadas. Aquela pessoa não estava abrindo a porta para alguém que bateu à porta uma cena antes, e então o explicador explicava, fazia a conexão desses dois momentos, dessas duas ações. A pessoa, ali de pé ao lado da tela, dizia: “ela está abrindo a porta à qual o outro acabou de bater”. Foi assim que se aprendeu o código do cinema, foi assim que se foi criando um código e o espectador foi aprendendo-o. Quando Orson Welles fez seu Cidadão Kane e inovou introduzindo o flashback como narrativa, na qual, de certa forma, a história ia do fim para o começo, isto também implicou num aprendizado para os espectadores.
O aprendizado do código se dá na vivência da obra, o aprendizado da água da piscina se dá ao se cair na piscina. Não adiantam mapas e teorias anteriores, tem-se que ir lá e experimentar. E isto é prazer, é diversão, algo que não pode ser considerado sério, naquele sentido que se discutiu. A escola, porém, acredita que sejam necessárias teorias prévias. A arte é um conhecimento, mas que tipo de conhecimento? Se a gente diz que é um conhecimento fundamentalmente corporal, sensível, é claro que isto não é mensurável, não pode ser sério, pensa a escola. É preciso cercar a arte com conhecimentos provindos da história da arte, da filosofia da arte, de todas essas disciplinas, para lhe emprestar um ar de seriedade. Por certo a dimensão lúdica da arte, seu caráter próximo ao jogo, tem que ser ocultada a fim de se manter a seriedade.
Mas fiquemos com outra citação do Huizinga:
Em suas formas mais complexas o jogo está saturado de ritmo e de harmonia, que são os mais nobres dons de percepção estética de que o homem dispõe. São muitos, e bem íntimos, os laços que unem o jogo e a beleza.
Voltando aos termos que compõem o título desta fala, percebam que já falamos sobre o brincar e o jogar, sendo o próximo deles o tocar. Tocar um instrumento e produzir música, sem dúvida é outra atividade lúdica. A música consiste também numa composição de formas, de harmonias, a música inclusive mexe com o nosso corpo, que a dança. A música começou sendo feita no corpo e pelo corpo, aliás; depois é que se criaram os instrumentos. A música é uma extensão do corpo, de seu ritmo e sua sonoridade. E note-se que ao se refletir sobre a poesia se percebe que poema e música são duas coisas bastante aparentadas, ambas se baseiam na sonoridade e no ritmo. O poema começa na oralidade... Mas este seria um tema para outra palestra, para outra discussão que não cabe aqui.
E o último verbo do meu título é atuar. Vamos pensar na atuação não só do ator, naquilo que faz ao desempenhar seu trabalho. Shakespare tem uma afirmação famosa: “a vida é um palco”, ou, “life is a stage”, no original. Quer dizer, a vida é um palco, e muitas teorias da sociologia e da psicologia fundamentam-se nos papéis sociais que a gente desempenha, atuando na vida cotidiana. O psicodrama, que é uma forma de psicoterapia, por exemplo, trabalha com isso, com o jogo daqueles papéis que nos cabem na vida. É comum as pessoas chegarem com problemas derivados de papéis cristalizados, jogados rigidamente. Seu desempenho social se baseia na maneira que elas crêem deva ser jogado um papel. O papel de marido, de pai, de chefe, de professor. E aí a psicoterapia visa justamente a permitir que elas olhem seu desempenho de outras formas, a mostrar que não há um script pré-determinado que ela acredita deva ser seguido. Ou seja, que ela pode criar a forma de seu desempenho, de sua atuação. Jogar com criatividade os seus papéis.
Por exemplo. O papel de professor, para se demonstrar seriedade, precisa ser jogado desta e daquela forma. Há que se fazer os movimentos corretos, dizer as palavras certas e se comportar como um professor sério. Porém, esse atuar, essa atuação, se a gente tomá-la sob a óptica de nossa dimensão lúdica mostra-se também um grande jogo. E a primeira criatividade parece ser essa: a gente criar o modo de jogar os papéis que nos deram ou os que escolhemos – o papel de pai, papel de mãe, de filho, de professor. Não há um script, um roteiro, somos nós que criamos o nosso modo de atuação. E é criando esses papéis que nós nos criamos a nós mesmos, aqueles que somos.
A existência precede a essência, diziam os existencialistas. Na medida em que eu vou existindo é que vou construindo a minha essência. Não há uma essência prévia, que preexista à minha vida. Na medida em que eu vou jogando meus papéis é que construo a minha identidade.
Vejam o que pensa a respeito o Rubem Alves:
As crianças... estão sempre conscientes de que não apenas assumem o brinquedo, mas que também são autoras do script. Elas não se esquecem das origens humanas de seus jogos, sentindo-se sempre livres para acabar com eles. Permanecem senhoras da situação, o que significa que esta pode ser reorganizada à vontade. (...)
Os adultos igualmente assumem papéis. Porém não se recordam de que o jogo foi criado por pessoas, esquecem-se de suas origens humanas. Como conseqüência disto, tendem a considerá-lo como uma sina. Convertem-se naquilo que fazem. Não criam os papéis e, por conseguinte, não são os autores das marcações de cena. Ao invés de serem senhores da situação, são por ela dirigidos.
O Rubem fala do brinquedo das crianças, assumido livremente por elas, e anteriormente falamos sobre o seu jogo com um cabo de vassoura, que montam como se fosse um cavalo. Como se. Este é um mecanismo fundamental para a existência humana, o “como se”. Notem que ele está presente tanto ao me comportar como se o cabo fosse um cavalo quanto ao aceitar a leitura como se fosse possível alguém se transformar num inseto. Na verdade, esse jogo do “como se” é constitutivo do ser humano e um dos responsáveis pela nossa evolução, das cavernas até a nossa presente situação. António Damásio, um neuropsicólogo português, hoje professor na Universidade de Idaho, nos Estados Unidos, e que publicou, entre outros, um livro intitulado O erro de Descartes, considera tal mecanismo fundamental para a nossa evolução, para a evolução de nosso cérebro. É por meio dele que podemos vivenciar coisas que ainda não aconteceram ou nunca vão acontecer, como se fossem verdades, como se fossem existentes. Alguém, por exemplo, vai fazer uma entrevista de emprego e já começa a pensar hoje nas respostas que vai dar amanhã, na entrevista. Começa a suar frio, sente dor de barriga e tem que correr ao banheiro; tem uma espécie de curto-circuito fisiológico
devido a uma situação inexistente no momento, uma situação vivida como se fosse atual.
Acerca disto o Rubem Alves tem uma história ótima. O sogro dele odiava miolo, miolo bovino – um prato, aliás, que pouca gente deve gostar. Certa ocasião ele foi convidado para um jantar formal. Ele, também uma pessoa muito séria e formal, ao final do jantar se dirigiu à anfitriã dizendo: “seu jantar estava maravilhoso, e a couve-flor empanada, ótima”. Ao que ela retrucou: “não havia couve-flor na mesa, o que o senhor comeu foi miolo”. Imediatamente ele teve um curto-circuito fisiológico e saiu correndo para vomitar tudo no banheiro. Como o próprio Rubem Alves diz, “o que ele vomitou não foi miolo, mas palavras”. Ele vomitou palavras. Apenas uma palavra, “miolo”, “curto-circuitou” toda a sua fisiologia. Percebam a dimensão simbólica nesse “como se”: ele comeu como se fosse couve-flor e tudo funcionou direitinho, mas depois uma simples palavra, um símbolo, transformou o vegetal em outra coisa e sua digestão entrou em colapso.
Essa dimensão do como se, portanto, está presente na vida humana da maneira mais cotidiana. E é ela que nos permite vivenciar as obras de arte de maneira emotiva, sensível; que possibilita a gente ser espectador no cinema ou no teatro, ler romances e nos comportarmos como se aquilo fosse verdade. Por meio dela podemos vivenciar situações imaginárias, vivenciar a experiência de outros seres humanos – eu me sinto como se estivesse na pele das personagens da obra.
Existem, pois, duas grandes formas do conhecimento humano, que são o saber sensível e o conhecimento inteligível. O conhecimento inteligível constitui toda significação de mundo que temos na cabeça, tudo aquilo em que a gente pode pensar, os signos, as palavras, os símbolos da matemática, os da química etc. E o saber sensível é dado pela nossa percepção corporal do mundo, pelo sentimento que as coisas nos despertam. Ao sentir o mundo, seus sons, cheiros, sabores, texturas, nosso corpo já lhes dá um sentido. Isto foi chamado de aisthesis pelos gregos, que em português se traduz por estesia. E anestesia é justamente o seu contrário: quando nossa capacidade sensível está bloqueada. Eu prefiro chamar o inteligível de conhecimento e o sensível de saber, pois o saber tem a ver com o sabor. Ao saber o mundo o nosso corpo o saboreia. O saber sensível representa nosso mais primordial conhecimento, o lastro de tudo o que vamos construindo simbolicamente, no modo inteligível. E é esse saber sensível que a arte procura captar, simbolizar.
Já a ciência, como a filosofia, constitui um dos mais refinados conhecimentos inteligíveis que o ser humano construiu. E como o nosso assunto central aqui é o jogo, a nossa capacidade lúdica, é bom se notar que a ciência, no fundo, também consiste num grande jogo. O Rubem Alves escreveu um livro maravilhoso chamado Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras, no qual ele procura demonstrar exatamente isto, que a ciência é um grande jogo de construir modelinhos. Modelinhos! Uma teoria nada mais é que modelinho que se constrói da realidade. Enquanto esse modelo vai funcionando para se explicar um dado do mundo, ele é verdadeiro. Quando surge algum aspecto da realidade que aquele modelo não consegue explicar é preciso se construir outro modelo. Vejam, por exemplo, a evolução do conceito, do modelo, do átomo. O modelo do átomo, desde os gregos, era uma bolinha durinha, a menor partícula de uma substância, indivisível – este, o significado da palavra átomo, indivisível. Depois que as radiações foram descobertas esse modelinho já não servia mais, e o que se fez foi mudar de modelo. Surgem então o próton e o nêutron num núcleo, com o elétron girando à sua volta. Próton, nêutron e elétron passam a ser as menores partículas da matéria. Em seguida se chega à física quântica, e esse modelo já não serve mais, é preciso alterá-lo. Prótons e nêutrons são formados de coisas ainda menores, os quarks.
A ciência, pois, é também um jogo, um grande jogo de armar. De armar modelinhos.
Vejam que estou citando aqui alguns autores que enfatizam a dimensão lúdica do ser humano como uma de nossas principais características, fundamental a todo processo criativo. Não posso deixar de mencionar o Schiller, filósofo do século dezoito que precisa ser incluído nesse time. Aquelas duas formas de conhecimento comentadas há pouco, o inteligível e o sensível, são chamadas por ele de impulsos, os nossos dois impulsos básicos. Sua grande jogada, porém, foi postular que aquilo que nos permite unir esses dois conhecimentos, esses dois impulsos, aquilo que nos permite articulá-los é um terceiro impulso, o lúdico. Essas reflexões estão contidas em sua obra mais conhecida, Cartas sobre a educação estética da humanidade, da qual é preciso citar os dois trechos a seguir:
O que significa... dizer “mero jogo”, quando sabemos que é o jogo e somente ele, dentre os vários estados do homem, que permite o desdobramento simultâneo e completo da dupla natureza humana?
A dupla natureza humana a que ele se refere são justamente o inteligível e o sensível. O jogo, a nossa dimensão lúdica, portanto, é que permite a ambos se manifestarem conjuntamente. E, a seguir, talvez a afirmação mais conhecida desse ensaio de Schiller:
Pois, para tudo sintetizarmos, o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga.
Bem, vamos retomar o nosso percurso. A gente começou com uma brincadeira, lá no início de minha fala, contando uma piada, que nada mais é do que um jogo de palavras. E aí seguimos com novos jogos de palavras, tentando fazer um pouco de filosofia, uma reflexão que procurasse mostrar que o jogo, o impulso lúdico, permeia as ações humanas. Tentei lhes mostrar que tanto a arte quanto a ciência são jogos de significar, e que antes de se refletir sobre esses jogos é preciso aprender a jogá-los. E a jogar se aprende jogando. Como a nadar se aprende nadando.
E já que falamos da linguagem como um jogo de palavras, acho bom pontuar que o mesmo desvio teorizante que a gente vê hoje na arte-educação acontece nas aulas de português e de literatura em nossas escolas. Neste livrinho mais recente que publiquei, A montanha e o videogame, há um ensaio com o título “O Poético, a Poesia e o Poema na Educação Estética”, no qual procuro discutir exatamente a linguagem como um grande jogo e como o ensino da gramática da forma como em geral é feito mata nos alunos o prazer de jogar com as palavras. Digo lá que, metaforicamente, o que o professor de português faz é reduzir uma obra de arte, um poema, a um cadáver. Ele mata o poema, coloca-o em cima da mesa – como se estivesse no IML – e o disseca com seus bisturis teóricos. Assim vão surgindo aos olhos dos alunos os órgãos do poema morto: objetos diretos, objetos indiretos, metonímias, sinédoques, metáforas etc. Toda a emoção do poema, sua dimensão estética, o prazer de vivenciá-lo, acaba, deixa de existir. Literatura vista assim vira uma coisa chata, para as crianças e os jovens. A gente não lê poemas para ficar identificando essas coisas, mas para se ter o prazer estético.
Vou contar outra história do Rubem Alves, relatada também naquele ensaio que agora pouco citei. Uma professora deu como tarefa a seus alunos lerem livros infantis de vários autores e lhes escrever cartas. Um desses livros era do Rubem. Ele então recebeu uma carta de um menininho da escola, de seus oito ou nove anos, contando que havia lido o livro: “seu Rubem, li o seu livro tal (não me lembro o título) e gostei muito. Nele aprendi a identificar dígrafos e encontros consonantais.” E aí, ao me contar este ocorrido, diz o Rubem: “e eu escrevi um livro para isto? Para a criança aprender dígrafos e encontros consonantais? Nem eu sei o que são dígrafos e encontros consonantais.” Nenhuma palavra sobre suas emoções, opiniões, sobre a história, se ele conhece alguém que viveu coisa parecida, nada! A história se resumiu a isso, dígrafos e encontros consonantais. E eu também não sei o que são dígrafos e encontros consonantais, mas isto não me faz falta para ler e escrever corretamente.
A propósito, um grande teórico da literatura, da lingüística, Tzvetan Todorov, que passou a vida estudando essas coisas complicadas da lingüística, os dígrafos, encontros consonantais, semiótica e coisa e tal, agora já entrado nos anos, acabou de publicar um livro chamado A literatura em perigo. E nele, dirigindo-se aos professores, coloca exatamente isso: parem! Parem de aborrecer as crianças e os jovens com toda essa teoria. Tudo isso que estudei ao longo da vida, tudo isso que nós teóricos estudamos é uma coisa para especialistas, para técnicos. Parem de atormentar as crianças na escola com essas coisas. O prazer da leitura é o prazer da descoberta do mundo. Ou de mundos, mundos diferentes. Essas teorias todas não servem para elas. Isso é coisa para pessoas adultas que desejam um conhecimento técnico. Não é isso a literatura, e por isso ela está em perigo. Porque estão afastando os jovens dela, de seus prazeres, de sua beleza. E está em perigo precisamente pelas mãos dos professores de literatura, infelizmente.
Interessante é que outro dia fiz estes comentários numa palestra em que havia vários professores de letras e eles não chegaram a me atirar ovos, mas me dirigiram olhares terríveis. E logo uns dias depois o Tostão publicou um artigo ótimo na Folha de S. Paulo intitulado “Poesia Não Cansa”. Para quem não sabe, o Tostão foi um grande jogador de futebol que depois se formou em medicina, fez curso de psicanálise, foi professor universitário e escreve muito bem – vive citando versos e bons poetas em sua coluna sobre futebol. Bem, nesse artigo ele comenta que o que está acabando com os craques no Brasil é o fato de as crianças não brincarem mais com bola nas ruas, nos quintais e nos campinhos, ou seja, não brincam mais de jogar. Elas são colocadas nas escolinhas de futebol, onde lhes ficam ensinando regras, táticas, teorias, e isto mata nelas o prazer do futebol, o espírito lúdico. Torna a coisa terrivelmente séria e não mais uma brincadeira.
No dia seguinte o Pasquale Cipro Neto, professor de português, também em sua coluna na Folha elogiou a aula que o Tostão havia dado em seu artigo, acrescentando que a mesma coisa está ocorrendo nas escolas em relação à literatura e à língua portuguesa. Muita teoria inútil e pouco prazer da vivência estética. Vejam: é um renomado professor de português falando isto, o que estou argumentando aqui, que antes de qualquer teoria é preciso o prazer do jogo, da experiência estética. A pretensa seriedade da escola se opõe ao prazer. E com as artes visuais e a música a escola vem fazendo a mesma coisa.
Bem, estou chegando ao fim de minha fala. Comecei brincando, fui jogando com palavras e reflexões e agora gostaria de terminar com outro jogo de palavras. Queria lhes falar um pouco sobre os palíndromos, que nem todo mundo conhece. Eles são apenas mais um exemplo de como a linguagem pode ser vista como um jogo divertido. Pois bem: palíndromos são frases que podem ser lidas da direita para a esquerda e da esquerda pra direita. O que se lê na ida se lê também na volta. Existem os palíndromos perfeitos, que são construídos com os bustrofédons. Vocês sabem o que é um bustrofédon?
Há algum Raul aqui? Nenhum? Pois Raul é um bustrofédon: lido ao contrario é Luar. Assim, um bustrofédon é uma palavra que ao contrário se torna outra, também existente e com sentido. Por exemplo: somar, de trás para a frente é ramos. Solar é ralos. Missa ao contrário é assim. Estas palavras são bustrofédons. Com os bustrofédons então a gente constrói os palíndromos perfeitos. Portanto, para a gente brincar e se divertir um pouquinho, seguem alguns palíndromos. Leiam as frases nos dois sentidos e vejam que sempre são as mesmas.
MISSA É ASSIM
SOMAR SOLAR E RALOS RAMOS
SOCORRAM-ME SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS
Vejam que este último não é um palíndromo perfeito, porque se precisa juntar as palavras para a frase se repetir e o acento circunflexo deve ser ignorado. Vejamos mais alguns:
A CARA RAJADA DA JARARACA
ANOTARAM A DATA DA MARATONA
Existem até clubes de palíndromistas. Aqui em São Paulo há alguns grupos. Alguns desses palíndromos que estou mostrando são do Laerte, cartunista, que em geral os publica em suas tiras na Folha de S. Paulo.
Sigamos com mais alguns:
RIR, O BREVE VERBO RIR
SAIRAM O TIO E OITO MARIAS
SIM, ÂNUS TEME TSUNAMIS
O MÍNIMO É O MÍNIMO.
O ROMANO ACATA AMORES A DAMAS AMADAS E ROMA ATACA O NAMORO
E não é que existem pessoas que ficam quebrando a cabeça para fazer isto? Que coisa mais inútil, não é? Porém, muito prazerosa. Um jogo. Parecido com o de palavras cruzadas. Tão inútil quanto, mas também bom de se jogar.
E agora para terminar gostaria de falar sobre o Osman Lins, falecido romancista que até chegou a ser professor num curso de letras, mas desistiu. Sua desprazerosa experiência de lecionar ele exorcisou num livro chamado Problemas inculturais brasileiros. Outro de seus romances é Lisbela e o prisioneiro, do qual se fez recentemente um filme. Mas o romance de peso dele, seu romance experimental, se chama Avalovara. Para escrevê-lo ele partiu da seguinte lenda latina: um senhor romano possuía vários escravos, entre eles um escravo frígio, ao qual disse um dia que se ele lhe trouxesse o palíndromo mais perfeito do mundo – em latim, claro – ele seria libertado. Esse escravo pensou e pensou um bom tempo até que conseguiu produzir o seguinte palíndromo: “SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS”. Ele significa “o lavrador Arepo mantém o arado em seu curso”, mas, metaforicamente, pode ser entendido como “o criador (Deus) mantém o universo no seu rumo”.
Muito feliz, ele foi comemorar o feito bebendo numa taverna, junto com um colega também escravo. Embriagado, acabou revelando o palíndromo e a promessa do senhor de ambos. Depois, de porre, apagou. Imediatamente o colega correu revelar ao senhor o palíndromo, e foi libertado em seu lugar. Diz a lenda que o autor, desesperado com o roubo e pelo fato de ter que continuar escravo, cometeu suicídio.
O palíndromo, que vocês vão ver, é considerado o mais perfeito porque pode ser lido não só da direita para a esquerda e vice-versa, mas em qualquer direção também na vertical, formando o que se chama de um quadrado mágico.
Notem essa espiral que sai do extremo superior direito do quadrado e, girando sucessivas vezes, chega até a letra N, em seu centro. Quem a desenhou foi o Osman Lins, e ela representa o fio condutor de seu romance, o Avalovara. As letras constituem os capítulos. O primeiro capítulo começa no R, na ponta da espiral. Em seguida ela passa no S, que é o segundo capítulo. Volta para o outro R, o terceiro, depois para um novo S, e assim vai girando até chegar ao último capítulo, que é o capitulo N – a única letra N de todo o palíndromo. Assim, no romance existem capítulos denominados por cada letra. E há ainda uma razão matemática que o autor emprega na arquitetura da obra. Cada capítulo tem sempre dez linhas a mais do que o capitulo anterior de mesma letra. O capítulo R inicial tem dez linhas e sua próxima aparição é com vinte, depois trinta e assim por diante assim. Então, a obra se baseia em vários jogos: um lingüístico, outro geométrico e ainda outro, matemático. Uma grande brincadeira, um imenso jogo de armar que o Osman Lins arquitetou para, sobre ele, desenvolver sua história, sua criação literária.
Bom, acho que já falei demais, não é?
Em poucas palavras, a idéia geral desta minha palestra tem a ver com a gente ser um pouquinho menos sério, no sentido ossificado do termo, e levar mais a sério o grande jogo da vida, tornando-o profundamente divertido.
Apresento-lhes então o meu último slide e em seguida fico aberto à visitação pública, quer dizer, às perguntas:
PURO GESSO! (Ou seja: por hoje é só!)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
______________________ A gestação do futuro. Campinas: Papirus,
1986.
CIPRO NETO, Pasquale. “Uma Aula do Grande Mestre Tostão”, em
Folha de S. Paulo, 15 de setembro de 2011.
DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes. São Paulo: Cia. das Letras,
1996.
DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos sentidos: a educação (do)
sensível. 5ª ed. Curitiba: Criar Edições, 2010.
________________________ A montanha e o videogame: escritos
sobre educação. Campinas: Papirus Editora, 2011.
GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. 13ª ed. Curitiba, Criar
Editora, 2006.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. 2ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1980.
LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da
Unicamp, 2011.
SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a educação estética da humanidade.
2ª ed. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1991.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
TOSTÃO. “Poesia Não Cansa”, em Folha de S. Paulo, 14 de setembro
De 2011.
Nossa que palestra... pena que tive que sair um pouco antes, mas que bom que encontraram este texto"hibrido"... assim poderei redimir minha culpa rsssss... Muito do que ou vi na palestra são coisas que acredito e que quero seguir... Aprender brincando, a importância do jogo (as meninas dos jogos teatrais e musicais bem sabem),o lúdico, tudo isso tem estado presente em nossas práticas... pena que algumas cobranças das escolas tem nos deixado de cabelos em pé... =/ ..confesso que quando Duarte falou que a gente tem tentado empurrar um monte de conteúdos pros adolescentes engoli seco ... pois pra fazer a avaliação pra minha turma, tive que fazer uma prova escrita que não estava nos meus planos, os alunos não foram bem, eles sabem o conteúdo do jeito deles... mas não conseguem escrever, sei que eles devem aprender a se expressar na escrita, mas acredito que podem ser avaliados de outras formas, e durante todo o processo... vou tentar outra forma para recuperação, quem sabe vocês terão oportunidade de acompanhar esta epata... espero que possam contribuir..
ResponderExcluirbeijos
by Kelly
QUANDO FALAMOS DE AVALIAÇÃO REALMENTE É COMPLICADO SEI QUE ESSE NÃO É EXATAMENTE O ASSUNTO AQUI TRATADO PORÉM MESMO ASSIM VOU ME COLOCAR NESTE TEXTO POIS EU TENHO UMA ENORME FACILIDADE DE FAZER AS COISAS NA PRÁTICA MAS QUANDO PRECISO ESCREVER OU ATÉ MESMO FALAR MINHA DIFICULDADE É BEM GRANDE E COM TODA CERTEZA O MESMO ACONTECE NAS ESCOLAS POIS CADA UM TEM APTIDÕES E DIFICULDADES QUE PODEM SER BENEFICIADAS OU PREJUDICADAS NA AVALIAÇÃO.
ResponderExcluirACREDITO QUE A ARTE POR SE TRATAR DE UMA EXPERIÊNCIA SENSÍVEL DEVERIA SER AVALIADA DE UMA FORMA DIFERENTE POIS SEUS CONTEÚDOS SÃO DIFERENTES.APESAR DISSO AINDA TEMOS QUE NOS ENQUADRARMOS NOS MOLDES DAS "MATÉRIAS SÉRIAS" E "IMPORTANTES".